Uma reflexão sobre ética, saúde e intencionalidade nas relações de cuidado no âmbito eclesiástico
Por Clarice Ebert
A tarefa do cuidar é instaurada pelos mandatos divinos ao homem e à mulher no cuidado de si, de um para com o outro, da descendência, do planeta e de tudo que nele respira, seja no ar, no mar ou na terra (Gênesis 1-2). Pode-se dizer que o modo de ser humano é essencialmente “cuidado”. Um indivíduo, sem exercer o cuidado, não se mostra humano; e, se não for cuidado, nem mesmo humano se torna. Segundo Boff, o fato de não apenas termos cuidado, mas também sermos cuidados, dá ao cuidado uma dimensão ontológica, sendo constituição do humano, um modo de ser singular do homem e da mulher, para além do fazer e/ou receber cuidado. Para Boff, é no cuidado que encontramos o ethos necessário para a socialidade humana.
Ethos é um termo grego, do qual se origina a palavra ética, que é usada para descrever o conjunto de hábitos ou crenças que definem um grupo, uma comunidade ou uma nação. Boff explica que ethos expressa o conjunto de valores, princípios e inspirações que dão origem a atos e atitudes que conformam o habitat humano comum. Considera indispensável um ethos de cuidado permeado de sinergia, benevolência, paz para a vida, para a sociedade e para o destino das pessoas.
Numa ótica similar, a poimênica eclesiástica — conceito que denota o trabalho pastoral — embasa o cuidado por meio das Escrituras, que sinaliza o cuidado de uns para com os outros na promoção da esperança. Numa anunciação das boas novas da salvação crística, do amor, perdão, paz e renovação da vida, tanto para a eternidade como para a existência da vida na terra.
Amor prático
Baseados nas Escrituras, pastores e pastoras professam uma esperança transcendente que se personifica, em boa parte, por um cuidado que expressa o amor prático na comunidade dos fiéis. Dessa forma, o cuidado característico do ethos referido por Boff se faz presente na poimênica eclesiástica. Um cuidado que traz renovação para a vida, numa esperança de reconhecimento, aceitação, cooperação, solidariedade e de sentido para a vida, que reconecta com Deus, uns aos outros e consigo mesmo.
Assim sendo, a tarefa do cuidado não se direciona apenas aos líderes, pastores e pastoras, como se fosse uma tarefa de uns favorecendo outros. Não é apenas estabelecer quem cuida de quem, como se uns fossem selecionados ou vocacionados para o cuidado e outros apenas para usufruírem desse cuidado. Muitas vezes, se espera que o líder eclesiástico promova um autocuidado, numa expectativa de que se atenha sozinho ao cuidado de si e esteja bem para sempre estar de pé para assumir os cuidados de outros.
Esse caminho pode ser uma bênção, mas também uma maldição. Bênção, porque na promoção do autocuidado um líder poderá encontrar maior saúde e bem-estar pessoal. No entanto, pode ser uma maldição quando a motivação é apenas se aprimorar para ser um modelo de cuidado de outros. Adotar essa postura pode desumanizar uma pessoa e levá-la ao adoecimento, mesmo que esteja muito bem-intencionada.
O autocuidado, apesar de ser uma responsabilidade pessoal, não pode estar desconectado do cuidado mútuo. Seres humanos não conseguem ficar bem apenas assumindo o autocuidado. Ainda será necessário deixar-se cuidar por Deus e pelos outros também. Selecionar alguns para cuidar e não torná-los igualmente alvos de cuidados pode instaurar as angústias da solidão. Seria como esperar que um líder se estruture forte, imbatível e infalível em seu modelo de autocuidado. O fato é que em uma comunidade humana, além do autocuidado, o cuidado mútuo será igualmente indispensável.
“Em uma comunidade humana, além do autocuidado, o cuidado mútuo será igualmente indispensável.” Clarice Ebert
Cuidado mútuo
O cuidado mútuo promoverá a experiência da comunhão e partilha, além de sanar a solidão existencial. Por meio de ações de amorosidade, cooperação, solidariedade, empatia, generosidade e gentileza, se manifesta a dinâmica poimênica do “uns aos outros”. Conforme as recomendações das Escrituras: “Sirvam-se uns aos outros” (Gálatas 5.13); “Sujeitem-se uns aos outros (Efésios 5.21); “Dediquem-se uns aos outros” (Romanos 12.10); “Saúdem-se uns aos outros” (2 Coríntios 13.12; “Consolem uns aos outros” (1 Tessalonicenses 4.18); “Consideremo-nos uns aos outros” (Hebreus 10,24); “Suportem-se uns aos outros” (Colossenses 3.13); “Exortem-se uns aos outros” (1 Tessalonicenses 5.11); “Edifiquem-se uns aos outros” (1 Tessalonicenses 5.11); “Amem-se uns aos outros como eu vos amei” (João 15.12).
Lembrando que o cuidado é essência do humano e não apenas um labor, pode-se compreender que reconhecer o outro como um ser que tem necessidades é percebê-lo como humano. Esse reconhecimento nem sempre alcança os que exercem a liderança eclesiástica. A falta dele, basicamente, se dá pelo restrito reconhecimento de sua humanidade. Muitas vezes, deposita-se sobre pastores e pastoras uma expectativa mítica, como se fossem sobre-humanos, mais próximos de Deus do que os demais, mais espirituais, sábios, santos, crentes, equilibrados, que não adoecem, não sofrem, nem se angustiam, não se desesperam, não temem e não choram. Alguém assim não precisaria de cuidado e poderia mesmo intensificar o cuidado de outros.
Assim sendo, corre-se o risco de adequação às ideologias de sucesso da sociedade atual para o crescimento da igreja. Naturalmente, não é errado querer o sucesso de um empreendimento. O perigo está nas formatações relacionais que se constituem em torno dessa intencionalidade. Facilmente, se instala o cuidado como mera ferramenta para alcançar intencionalmente um objetivo de sucesso, que comumente se traduz em adesão numérica dos fiéis. O cuidado como ferramenta de expansão de uma instituição se enviesa por interesses escusos. Não é mais a pessoa que importa, como se professa em bons discursos, mas é um interesse pelo que a pessoa pode representar ou contribuir para a multiplicação numérica da comunidade.
Utilitarismo versus cuidado pastoral (poimêmica)
Essa intencionalidade, que maquia as relações de descaso, com algumas estratégias de cuidado de uns para com outros, sem reciprocidade, cria uma convivência utilitarista e não poimênica. Cuidar de outros, sem ser cuidado, pode se tornar uma tarefa árdua, pois se reconhece apenas as necessidades alheias, e as próprias vão sendo deixadas de lado. O grande risco é adotar o ativismo como estilo de vida, de tal forma que o envolvido na tarefa do cuidar não mais consegue se ver no processo de cuidar das pessoas. As pessoas cuidadas, por sua vez, se acoplam a esse cuidador abnegado como sanguessugas insaciáveis por mais e mais cuidado.
Dejours refere que um trabalhador ao mergulhar num ativismo alienante, de tal forma que nega as suas necessidades como indivíduo, acaba comprometendo a sua saúde no descuido de aspectos importantes da sua vida. As Escrituras dão um importante alerta nesse sentido ao lançar a pergunta: “Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Marcos 8.36). Perder a alma é virar máquina sem coração, que não sente, não se emociona, não chora pela dor de outrem e nem se regozija com a alegria alheia e nem com a própria.
Boff afirma que a sociabilidade entre os humanos se rompeu ao se perder a visão do ser humano como ser de relação, de criatividade, de cuidado, de espiritualidade, portador de um projeto sagrado e infinito. O resgate da capacidade de se sentir e de sentir o outro urge em acontecer. Para o autor, é preciso impor limites à obsessão pela eficácia a qualquer custo e derrubar a ditadura da racionalidade fria e abstrata para dar lugar ao cuidado. Portanto, ao invés da lógica utilitarista, deve-se resgatar a lógica do cuidado em reciprocidade.
Clarice Ebert
Psicóloga (CRP08/14038), Terapeuta Familiar, Mestre em Teologia, Professora, Palestrante e Escritora. @clariceebert
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1 Comentário
Sara
Uau, texto pertinente em todo tempo, mas no contexto atual faz-se completamente necessário abordar esses temas. Parabéns, amei! Deus abençoe!