Em artigo gentilmente cedido a Homens Mentores e Mulheres Mentoras, Steve Griffiths, missionário da OMF International, fala sobre a perspectiva bíblica acerca da vida e da eternidade.
Minha esposa, Anna, e eu moramos em Cingapura por quase 12 anos. Nesse período, o horizonte da cidade mudou constantemente. Se um prédio residencial tinha 20 anos, ninguém mais queria morar lá. Diante dessa postura, a resposta era: “Derrube e construa um novo!” Assim, arquitetos, engenheiros e construtores investiam alguns de seus melhores anos de vida e toda a sua criatividade trabalhando sete dias por semana para construir um edifício magnífico. Apesar de todo esforço, pouco tempo depois, as escavadeiras e a bola de demolição destruíam tudo novamente. Assim, o processo se repetia: outros arquitetos, construtores e engenheiros reiniciavam novas construções. Era cansativo assistir! Esse fato me fez pensar no seguinte: “Não demora muito para que nosso trabalho, nossa vida e nosso legado sejam esquecidos, como se nunca tivessem acontecido”.
O poeta britânico T.S. Eliot escreveu: “A raça humana não pode suportar muita realidade.”¹ Como o membro de um pequeno grupo nos disse certa vez: “Se há um versículo ou passagem da Bíblia que é muito difícil de entender ou me deixa desconfortável, ignoro!”
Por outro lado, o grupo brasileiro Tanlan escreveu na música “Vaidade”:
“Sou uma criança que chorou logo ao nascer
O velho homem que morreu sem perceber
Eu sou o pó que levanta de manhã e à noite, se foi…
Um hábito inútil, sem sentido, um vapor
Um transitório indiscreto, um louco sem pudor…
A vaidade das vaidades, um vazio sem fim
A busca da realidade é o que me trouxe aqui”
Eclesiastes nos deixa desconfortáveis exatamente porque se envolve com uma realidade que muitas vezes preferimos ignorar. Mas o Mestre se recusa a ignorar a realidade. Ele aplica seu coração para entender esse “negócio infeliz”, essa vida curta que aparece e desaparece sob o sol.
1. Nosso guia na névoa
O Mestre começa com uma frase surpreendente. “Vaidade de vaidades, diz o Mestre, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade.” A Wikipédia diz que “a vaidade é uma preocupação excessiva nas suas habilidades ou atratividade para outros.”
Mas esse NÃO é o significado da palavra que o Mestre usa aqui. A palavra hebraica hă•ḇêl não é fácil de traduzir. Em outras partes da Bíblia, o termo pode ser traduzido como “futilidade”² ou “o nada”³. Mas o uso mais comum da palavra é “fôlego” ou “névoa”⁴. O Mestre diz hă•ḇêl. “Névoa de névoas. Névoa de névoas! Tudo é névoa”. Mesmo assim, ainda nos perguntamos: o que ele quis dizer?! Analisar o texto nos ajudará a entendê-lo.
Ele fala sobre trabalho (vs. 3). Pare e pense: aonde nos levam todo o nosso trabalho duro e as inumeráveis horas que a humanidade dedica ao ofício? Nosso filho agora é um médico como eu. Um de seus pacientes apresentava um tumor maligno no pescoço que o sufocava lentamente. Profundamente perturbado por esse sofrimento terrível, ele tentava entender a situação. Há trinta anos, tive um paciente semelhante e também fiquei profundamente perturbado. Quanto o mundo realmente mudou? Com milhões de médicos e tantos avanços na ciência, cada geração ainda tem 100% de mortalidade!
Na sequência, o autor fala sobre a família (vs.4). Quantos de nós podemos nomear todos os nossos bisavós? Estou fazendo uma pergunta arriscada, especialmente em uma cultura como a brasileira que valoriza tanto a família! O Mestre ressalta que mesmo nossa família, as pessoas que mais nos valorizam, se esquecerá de nossos nomes dentro de uma ou duas gerações. Não apenas nosso trabalho, mas também nossa memória em breve se perderá.
Ao prosseguir, o Mestre olha para o mundo (vs 5-7). O sol nasce e se põe apenas para nascer de novo. O vento sopra e para e sopra novamente. Todos os rios correm para o mar. Então o mar enche sempre? Não, porque um trilhão de toneladas de água evapora na atmosfera todos os dias. Essa água cai como chuva, enchendo os rios que correm para o mar, para evaporar novamente. O ciclo do sol, vento e água é repetido infinitamente.
Obviamente, a confiabilidade e a repetição da criação são boas porque sustentam a vida, inclusive a nossa. “Mas espere um minuto,” — o Mestre chama a nossa atenção — “nascemos, crescemos e trabalhamos; alguns de nós cria uma família, envelhecemos e morremos, mas o que é realmente alcançado?”
“É tudo névoa”, diz. A névoa pode ser tão bonita. Mas também é ilusória. Você já teve um dia perfeito? Um dia que desejou guardar para sempre? Você tentou pegá-lo e guardá-lo, colocá-lo em uma garrafa e levá-lo para casa, mas não pôde. O Mestre não consegue encontrar nada duradouro. Tudo o que ele tenta segurar se dissolve em suas mãos. A vida é transitória, como uma névoa que não pode ser capturada⁵. A vida é dolorosamente breve⁶, uma névoa que desaparece junto com o amanhecer.⁷
O Mestre pergunta (v 3). “Que lucro há na vida?”⁸ A palavra usada envolve a ideia de algum resultado substancial. O sol pode nascer, mas depois se põe. A chuva pode cair, mas logo volta às nuvens. O que é finalmente alcançado pelas atividades da vida? E a resposta do Mestre é: “Nada” — a vida é insubstancial.
Tudo isso é cansaço (vs 8)⁹. Os apetites são alimentados, mas nunca saciados. Os olhos não podem aproveitar com satisfação o que veem, e os sons que enchem os ouvidos desaparecem na lembrança¹⁰. Há riqueza, mas também pobreza; há justiça, mas incompleta; há alguns saudáveis, mas muitos com corpos quebrados e mentes defeituosas; há muitas histórias interrompidas por acidentes e violência. A vida não é apenas transitória e insubstancial, mas também contaminada pelo mal, um “negócio infeliz”¹¹. E, assim, o versículo 14 termina com o eco triste “tudo é névoa”.
Dois presentes, no entanto, nos são dados se considerarmos essa realidade desconfortável.
2. Nosso presente “na névoa”
Essa dolorosa realidade que o Mestre pinta para nós certamente se aplica aos materialistas do mundo. E como cristãos também precisamos enfrentá-la. É tentador vivermos apenas no futuro, envoltos em meio a vários trabalhos e dificuldades a resolver, geralmente por motivos bons e piedosos. Depois que tivermos feito essas coisas, dizemos que ficaremos contentes em como Deus nos ajudou e nos abençoou. Mas, a essa altura, novas ocupações e dificuldades surgirão. O vento retornou para o norte e começou a soprar para o sul novamente. E, como resultado, teremos perdido as coisas que Deus nos dá para desfrutar diariamente.
Se nossa satisfação está localizada em fixar o futuro (em termos uma lista de tarefas que apenas cresce e cresce), deixamos de estar satisfeitos no presente. O Mestre nos diz: “Deus fez tudo bonito /apropriado ao seu tempo designado”¹². As atividades da vida não devem ser avaliadas apenas em termos de valor futuro ou benefício líquido; eles devem ser desfrutados como presentes / oportunidades que vêm da mão de Deus¹³ quando ele os der para nós.
Se nossa satisfação está localizada em fixar o futuro (em termos uma lista de tarefas que apenas cresce e cresce), deixamos de estar satisfeitos no presente.
O tempo para chorar não é “cancelado” pelo fato de haver um tempo para rir. O tempo para plantar não é “extinguido” por existir um tempo para colher. Todas essas coisas têm seu tempo ordenado por Deus, e devemos abraçá-las¹⁴. Essa não é a “sabedoria mundana” por duas razões:
Em primeiro lugar, o Mestre não nos convida a desfrutar dos prazeres do pecado, mas a desfrutar do que Deus fez e a nos ocupar com as tarefas que Ele nos designou¹⁵. Segundo, contentamento e gratidão não são comuns no “mundo”, mas devem ser comuns entre aqueles que entenderam um pouco da bondade de seu Criador e de sua graça para com suas criaturas.
3. Nosso presente “da névoa”
Um erro que muitos cristãos cometem é pensar que, quando chegamos à fé, de alguma forma passamos a entender o significado e o propósito dos eventos que acontecem à nossa volta, que conseguiremos ver facilmente por que Deus fez o que fez em uma situação específica, que saberemos o que Ele fará em seguida. Pensamos que, se estivermos realmente próximos de Deus, ficará claro para nós a cada momento como Deus age em todas as coisas para o nosso bem. Mas a crença em Deus não alivia a experiência vista e sentida no contexto de hă • ḇêl. J.I. Packer diz:
“A verdadeira base da sabedoria é reconhecer que o curso deste mundo é enigmático, que muito do que acontece é inexplicável para nós, e que a maioria das ocorrências “sob o sol ”não apresenta nenhum sinal externo de um Deus racional e moral que os ordene. … O Deus que governa isso se esconde. Raramente este mundo parece administrado por qualquer providência divina.”¹⁶
Se pensarmos que podemos descobrir exatamente o que Deus está fazendo, nos enganamos. Portanto, aqueles que são sábios como o Mestre fazem a pergunta: “Por que somos deixados na névoa?” Aqui estão duas considerações finais sobre o porquê, como cristãos, vemos que hă•ḇêl é um presente de Deus:
Em primeiro lugar, reconhecemos que nossa experiência de hă•ḇêl não é parte integrante da criação, sem significado ou explicação. Em vez disso, hă•ḇêl é uma condição imposta por Deus ao mundo e aos seres humanos em particular. Hă•ḇêl não fazia parte da criação original, mas na queda tal situação foi imposta por Deus como nosso criador e juiz. Podemos nos consolar com o fato de que nossa experiência com o mal, a transitoriedade e a impermanência são realidades que não durarão para sempre.
Em segundo lugar, o Mestre diz que Deus colocou a eternidade em nossos corações¹⁷. Temos uma consciência dada por Deus de que há algo mais do que os dias individuais e os detalhes de nossas vidas. Deus tem um propósito e um plano supremos. Mas lutamos com o fardo de saber que essa realidade maior existe sem podermos vê-la claramente. O Mestre diz que Deus coloca essa frustração no coração humano para que nós, que temos ouvidos para ouvi-la, reconheçamos a diferença entre nós e nosso Criador e O adoremos. “Deus fez isso para que os homens o reverenciem”¹⁸. Na maioria das vezes, Deus é deixado de fora da discussão, mas quando Ele é apresentado, tudo muda. “Vida debaixo do sol”¹⁹ se torna vida “da mão de Deus”²⁰. Nossa busca de significado deve mudar para a busca de Deus. Essa exploração da “névoa” da vida se torna um convite para conhecer a Deus.
Nossa busca de significado deve mudar para a busca de Deus. Essa exploração da “névoa” da vida se torna um convite para conhecer a Deus.
Isso não significa renúncia abandonada, desistir em desespero — isso é fatalismo. Nem significa lutar para tentar controlar o que acontece “sob o sol”— pois ficaremos com um punhado de ar. Em vez disso, Eclesiastes exige temor e humildade obedientes, à medida que procuramos conhecer o Criador: o Criador que propõe e leva a cabo tudo o que ocorre debaixo o sol. Amém.
Notas e referências:
¹ Burnt Norton (1935)
² Jó 21.34, Sl. 62.9 ³ Sal. 39.6, Is. 49.4
⁴ Jó 7.16, Sl. 39.5, Pv. 21.6
⁵ Ec. 1.14
⁶ Ec. 9.9ff
⁷ Ec. 1.14
⁸ Ec. 1.3
⁹ Ec. 1:8a; cf.Rm 8:22
¹⁰ Ec. 1:8b
¹¹ Ec. 1:13
¹² Ec. 3.11
¹³ Ec. 2.24
¹⁴ cp. 11.8ff
¹⁵ Ec. 3.10–11
¹⁶ J. I. Packer, Knowing God (Downers Grove, IL: InterVarsity 1973), 94, 95.
¹⁷ Ec. 3:11
¹⁸ Ec. 3:14
¹⁹ Ec. 1:3, 9, 14 ff 26 referências a “debaixo do sol”.
²⁰ Ec. 2:24, 9:1 2 referências à “mão de Deus”.
Artigo escrito por Steve Griffiths, missionário da OMF International.